A última página

Conto escrito para a 4ª edição ( Fantasia) do projeto “Em um mês, Um conto”.

Parte 1

Há algum tempo, descobrimos que somos personagens de uma história, um tanto esquisita, na qual uma maldição caiu sobre nós, após a autora perder a última página do seu manuscrito. Nossos poderes foram reduzidos, o que tornou a missão de acabar com os Muoroks – homens cuspidores de fogo – ainda mais difícil.

Devo explicar aos leitores, que a narrativa que vos trago pode ser interrompida a qualquer momento com a minha morte, pois, enquanto procuramos a última página, e tentamos quebrar a maldição, somos caçados impiedosamente pelos Muoroks.

Tivemos notícias de que a última página poderia estar em uma aldeia do povo Ticuna, próxima a Jutaí, no Amazonas. Viemos à procura de um Pajé com suspeitas de que ele guardava um segredo valioso.  Nosso tesouro poderia estar tão perto… A esperança de nos libertarmos estava novamente acesa.

 Chegamos ao Solimões um pouco antes do pôr do sol. As águas barrentas seguiam, calmas, o seu percurso ao encontro do Rio Negro. Nos camuflamos com cuidado para não sermos notados, e ficamos à espera do pescador, que àquela altura já deveria estar no local combinado.

O ar de tranquilidade nos dava a impressão de que estávamos sós, mas o atraso do pescador já nos inquietava em meio ao silêncio da floresta, que era cortado apenas pelo movimento brando das águas e pelos acordes de algumas aves saudando mais um crepúsculo.

— Precisamos fazer algo! Não podemos ficar aqui parados — disse Niara com o olhar fixo no rio. Ela é uma guerreira nata. Queria entrar em ação. O manto da noite já cobria a floresta.

— Calma. Eles podem estar por aqui — respondi sussurrando. Como líder do grupo, precisava manter o equilíbrio, mesmo sabendo que Niara estava certa. Algo de muito ruim havia acontecido com o pescador.

— Não tenho dúvidas de que ele foi apanhado em sua viagem — disse Márcio com olhar apreensivo. Seu instinto militar nunca falha. Na verdade, suas habilidades militares têm sido fundamentais para nos mantermos vivos até ali. Mas ele parecia cada dia mais fraco.

O outro membro da nossa equipe é o meu irmão Cauã, nosso talismã. A maldição o transformou em um falcão e o fez perder a voz. Enquanto humano, seu poder era a velocidade, o qual não perdeu. Como ave, ele desenvolveu a habilidade de pressentir alguns perigos, principalmente a aproximação dos Muoroks e a capacidade de se comunicar comigo pelo olhar. Mas suas habilidades também estavam diminuindo com o passar do tempo.

— Vocês têm toda razão. O pescador deve estar nas mãos dos Muoroks, ou mesmo morto a essa hora. Miseráveis! Como aqueles desgraçados conseguem nos rastrear sempre — respondi ao Marcos dando um soco no tronco em que estávamos encostados.

Eu havia feito uma tímida fogueira para nos esquentarmos. Não podíamos chamar a atenção. Tenho a habilidade de produzir e controlar o fogo em minhas mãos. Como as habilidades do meu irmão estavam limitadas, era preciso colocá-lo em risco, pois ele teria que sobrevoar alguns trechos do rio para ver se descobria o que aconteceu ao pescador.

Após uma hora, Cauã retornou e pousou em meu braço. Estava trêmulo. Seu olhar nos disse o que já esperávamos. O pescador foi pego pelos Muoroks. Apenas o barco foi visto à margem do rio, a alguns quilômetros da nossa localização. Só nos restava seguirmos a pé até a aldeia. Não havia outra saída.

Cauã descobriu onde ficava a aldeia seguiu a nossa frente, voltando sempre para nos informar sobre o que o trajeto nos reservava. A noite foi nossa amiga naquela caminhada. Ao amanhecer, chegamos exaustos ao povoado Ticuna. Niara se apresentou na sua língua e convenceu os jovens que nos receberam a nos levarem até o Pajé.

Percebi certa aflição no rosto dos homens e das mulheres pelos quais passávamos. Eles nos olhavam com admiração, como se fôssemos heróis. As crianças cochichavam e corriam olhando para nós.

O Pajé nos recebeu e nos levou para um lugar reservado. Contou-nos que havíamos chagado atrasado. Toda aquela se devia ao fato de terem encontrado o corpo do pescador que faria a nossa viagem. O que se sabia, até então, era que ele foi arrastado do seu barco e, provavelmente, morto pela Iara.

— Culpam a Iara? — perguntei com tom de espanto — Queria a confirmação da boca do Pajé.

— A Senhora das Águas não faria uma maldade dessas — respondeu ele com o olhar submerso nos pensamentos.

— Mas o que aconteceu no rio, então? Não me diga que…?

— Vocês não conhecem a Senhora das Águas — insistiu o Pajé com voz incisiva — Ela protege nossos rios de homens maus. Aquele pescador tinha um bom coração. Muitos a julgam de vingativa pelo que lhe aconteceu no passado…

O Pajé fez uma pausa com o olhar fixo no meu irmão. Algo lhe chamou a atenção. Eu conhecia a história da Iara, mas o Márcio pediu que o Pajé a contasse.

— Pode nos dizer o que aconteceu com Iara no passado?

— Sim, jovem. — respondeu o Pajé ainda a observar nosso falcão. —

Ela era uma guerreira, filha de um pajé e possuía algumas habilidades, o que causava inveja para os seus irmãos, que decidiram matá-la. Habilidosa na arte da guerra que era, ela resistiu aos ataques dos irmãos, lutou e matou todos eles. Temendo a reação do Pajé, seu pai, resolveu fugir, mas foi capturada. Como castigo seu pai decidiu lançá-la entre os rios Negro e Solimões.  Era uma noite de lua cheia. Levada pelas águas, teria um fim trágico, quando foi salva pelos peixes. E, assim, se transformou na Senhora da Águas.

Ao terminar a história, o Pajé estava com os olhos fixos nos de Cauã. De repente, ele sentiu uma tontura e quase caiu. O ajudamos a se sentar.

Olhei para o meu irmão e tive a mesma visão do Pajé. O pior havia acontecido àquele pescador. Até mesmo a Iara estava em Perigo. O mundo estava em sombras.

Continua…

7 comentários em “A última página

  1. Acho fascinante maravilhoso que você esteja usando folclore brasileiro. Eu pessoalmente não tenho domínio suficiente para escrever um conto com base no nosso folclore.

    Gostei muito do uso de regiões geográficas reais, e a história parece muito interessante.

    Eu fiquei com a impressão que am in ou dois lugares algumas palavras não foram colocadas. Como:

    “O Pajé nos recebeu e nos levou para um lugar reservado. Contou-nos que havíamos chagado atrasado. Toda aquela (o que?) se devia ao fato de terem encontrado o corpo do”

    Fora isso estou curioso para ver como você vai desenvolver a história. Acha que vai conseguir fechar o ciclo nas páginas restantes?

    Aguardo para ver

    Curtido por 1 pessoa

    1. Obrigado, Marcus! Valeu pelas observações no parágrafo destacado. Realmente ficou com uma falha de concordância em ” havíamos chego atrasado” / “atrasados” e no outro caso seria “Toda aquela agitação”. Concordo contigo. Será um grande desafio fechar o ciclo nas 8 páginas. Até penso em desenvolver a ideia em um projeto maior.

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